Enable javascript in your browser for better experience. Need to know to enable it? Go here.
Blogs Banner

Metamorfose

Então, quando eu era criança…

 

Você pode se perguntar: que frase é essa para começar um artigo? Pois bem, essa é uma frase muito comum no meu cotidiano e no da maioria das pessoas trans. Parece que sentimos uma obrigação de explicar, a todo momento, quem somos e porque, sendo que simplesmente somos, sem necessidade de explicações. Então você deve se perguntar: por que escrever sobre você nesse texto?

 

A resposta é simples. Vou escrever sobre mim porque as pessoas trans são inviabilizadas, discriminadas e agredidas pelo simples fato de serem quem são. Então, gostaria que as pessoas cisgênero refletissem sobre a seguinte pergunta e pensassem em uma resposta:

 

Você já sofreu alguma discriminação? 

Caso a resposta seja positiva: essa discriminação é por você apenas existir?

 

Nós, pessoas trans, somos discriminadas pelo simples fato de existirmos, então, se estou escrevendo esse texto é porque eu vou fazer o máximo possível para encorajar outras pessoas como eu e mostrar a elas que a luta não para, que somos fortes, inteligentes, bonitas e todos os adjetivos que a nossa sociedade costuma acreditar que são cabíveis apenas para pessoas cis.

 

Nesse contexto, minha trajetória profissional na Tecnologia da Informação teve um papel importante. Comecei a trabalhar como pessoa desenvolvedora em 2014, e desde então escutei que era um profissional muito bom. Porém, eu era incapaz de ver isso, era como se houvesse uma barreira para me enxergar como realmente sou. O tempo foi passando e fui percebendo que o que faltava em mim, para me sentir uma pessoa bem sucedida, não era um cargo alto em alguma empresa, ou ser milionário ou famoso. O que faltava era eu me permitir ser quem realmente sou, ou seja, faltava eu nascer de verdade.

 

Passado algum tempo, em 2018, em um certo final de semana que viajei para a cidade dos meus pais, entrei em uma loja de roupas e me deparei com o atendente, que era um homem trans. Naquele momento, senti as famosas "borboletas no estômago" e achei isso muito curioso. No outro dia, voltei até a loja para ver se conseguia entender o que eu havia sentido e, até hoje, quando me lembro, percebo que aquilo teve um impacto muito forte. Como se eu tivesse ficado frente a frente com o meu verdadeiro eu. Naquele exato momento, sei que sufoquei esse sentimento, pois pensei: como poderia ficar a minha vida profissional? Quais consequências isso traria para a carreira que lutei pra construir? 

 

Até então, minhas experiências em empresas de tecnologia haviam sido boas, eu tinha algumas relações saudáveis, porém, senti que os ambientes não eram tão abertos à diversidade. Muitas vezes, tentavam uma ação ou outra, porém, sempre algo muito superficial, e com frenquência eu sentia a discriminação velada. Certa vez, cheguei a escutar de um superior que se eu quisesse um cargo mais alto deveria evitar certos assuntos no ambiente de trabalho. Isso me sufocou por muito tempo, me calou, ficou adormecido.

 

Foi então que, no final de 2019, recebi a indicação de uma grande amiga, Edlaine Zamora. Realizei o processo seletivo para trabalhar na Thoughtworks, passei e fui trabalhar pelo escritório de Belo Horizonte. Ao chegar na empresa, fui recepcionado pela Lana Marx, uma mulher trans, pessoa incrível, e que contribuiu para parar de sufocar o meu eu, pois percebi que naquele ambiente eu poderia ser verdadeiro porque era um lugar seguro. 

 

Em janeiro de 2020, mês da visibilidade trans, a Lana organizou junto com outras pessoas uma semana na Thoughtworks com documentários, talks e muita informação sobre pessoas trans, e foi no decorrer desses eventos que eu me dei conta de que proteger o lado profissional não era mais preciso, eu não precisava mais me manter escondido. A partir dali, tudo mais que me prendia no armário (ou num corpo estranho de mulher) foi caindo por terra e todas as pequenas coisas que eu sentia desde quando eu era criança fizeram sentido. E então, em março de 2020, eu decidi nascer (ou renascer). 

 

Então quando me fazem a pergunta “quem é você?”, eu respondo: eu sou o Lucca, moro com minha companheira, Patrícia, que é uma pessoa maravilhosa, e nos apoiamos mutuamente. Muito obrigado, Pati, por fazer parte da minha vida. Adotamos uma cachorrinha, a Ada, que trouxe uma tremenda agitação para as nossas vidas. Trabalho como desenvolvedor de software na Thoughtworks, em um time que acompanha minha jornada, há quase dois anos, e que me apoia desde sempre. Sou uma pessoa comum e é simplesmente isso que desejo ser, mas, diferente das pessoas cis, tenho que lutar todos os dias por esse direito. 

Aviso: As afirmações e opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade de quem o assina, e não necessariamente refletem as posições da Thoughtworks.

Explore insights de Thoughtworkers de todo o mundo